
Não se ponha pois a me querer como obra em três volumes:quero ser consumida como tira de três quadros.*talvez quatro...
A atmosfera do quarto é bem nítida: a disposição das coisas, a familiaridade do cheiro resultante de cigarro, incenso, ração de cachorro e limão, os sons da madrugada e o barulho da manhã, os bichos visitantes e as plantas hóspedes. Às vezes, parecia que o ar brilhava, como nos sonhos.Havia ali, a despeito da despretensão do meu primeiro contato, a confluência da satisfação de curiosidades, da descoberta de afeição e do compartilhamento de todo tipo de bagagem íntima.Dentre as inúmeras vezes que dancei e penteei os cabelos em frente ao espelho, me debrucei na janela pra sentir o vento passar ou sacudi a poeira dos móveis e mergulhei naquele micro-caos ao som das músicas que só eu gostava, em nenhuma delas eu esqueci que poderia jamais tornar a estar ali.. por todos os motivos dos quais eu sempre falei e, intuitivamente, pelo não menos previsível absurdo que se deu.Numa noite, em que o sono mais uma vez teimava em não chegar só pra mim, eu me pus a observar tudo, tentando registrar: como a luz entrava pelas cortinas, quantos objetos de decoração presenteados por mim, a textura inconfundível dos lençóis, a altura dos travesseiros, o pouco espaço que me sobrava na cama... e comecei a acreditar que havia mesmo um pedaço meu ali também, pra você. E que os tais presentes inúteis eram a minha tentativa frustrada de dizer isso.E daí, eu reparei em você dormindo. E não vi mais o menor sentido em pensar em nada disso. Porque sua respiração engraçada, seu cabelo amassado, suas mãos mais lindas do mundo enfiadas debaixo do rosto e o bico que você só faz quando dorme formavam a imagem que eu, de fato, conseguiria reproduzir com a maior das precisões quando finalmente viesse a falta de me sentir daquela forma.
- Então, moça...leva o note com você! Daí a gente não interrompe a conversa...- Sério? Meu Deus......- Viu?! Nem dá pra ver nada! Além do mais, não é nada que você também já não tenha me visto fazer...- Eu nunca lhe vi fazendo xixi.- Não? Pôôôoo, a gente precisa resolver isso!(Ela pensa: a)por que a gente insiste em usar essas respostas prontas quando quer parecer esperto?; b) que maneira estranha de se insinuar...; c)bem, mas é uma insinuação!)Responde:- Pô, com certeeeeza...
- Você vai comer isso?...Tipo, brigadeiro com sorvete?!- Vou.- Calma, não precisa se irritar...você jantou hoje?- Uhum.- Parou de fumar, não foi?- Foi.- Jantou o quê?- Carne.- Só carne?- Farofa e batata.- É, você tá ansiosa...me dá um pouco desse sorvete, do seu mesmo?!- ... me empresta o isqueiro?- Oba, vai flambar o sorvete!... Não me diga que você vai fumar...- Não, espera aqui que eu só vou buscar o álcool.
Tava parada, sentada na mesma mesa da cozinha, pensando que as coisas que ele diz pareciam ter sido ditas por ela, em algum momento.Levantou, bebeu um gole de suco misturado - acerola com maracujá - e concluiu que as coisas que ele dizia ou pensava já não faziam propriamente diferença. Mas, dos questionamentos sem eira nem beira não se livraria nunca...Riu sozinha e apagou a luz.